Oliver Sacks, brilhante neurologista, relata em O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, no capitulo intitulado mãos, o caso de Madeleine. É uma paciente de 60 anos, cega de nascença e com paralisia cerebral, vinda de uma família protetora. Apesar de seus problemas, ela falava fluentemente e não apresentava nenhum retardo mental, o que o surpreendeu. Era inteligente e muita culta. Perguntou-lhe se lia bem em braile e ela disse-lhe que não, que sempre tinham lido ou gravado coisas para ela, pois suas mãos eram massas imprestáveis e que ela nem acreditava que faziam parte dela.
Acompanhando a paciente ele percebeu que apesar de não ter nenhum dano na sensibilidade das mãos, ela não reconhecia ou identificava nada com suas mãos. Ou seja, ela tinha o potencial, mas não a capacidade. Ela não integrava às sensações às percepções. Pelo fato de nunca ter usado suas mãos para ir ao banheiro, comer, pegar qualquer coisa, ela não percebia nem atuava com suas mãos, era como se não as tivesse. Questionou-se se isso teria ocorrido pela ausência dos movimentos exploratórios normais que surgem nos primeiros meses de vida. Se fosse esse o caso, ela conseguiria adquirir aos 60 anos de idade o que deveria ter aprendido enquanto bebe?
O grande desafio era a ação. Então, um dia que a comida ficou um pouco distante dela, ela, faminta, estendeu o braço e pegou uma rosquinha. Essa foi sua primeira percepção, o primeiro ato, que abriu uma fome de exploração ainda maior. Graças ao seu nível intelectual, rapidamente passou a reconhecer objetos, com uma curiosidade vivida, um imenso prazer de descobrir um mundo cheio de encanto, beleza e mistério. Dos objetos passou às pessoas, explorando seus rostos em repouso e em movimento. Logo passou a modelar argila e tornou-se uma artista conhecida no local por suas figuras.
“Que maravilhosa possibilidade de aprendizado tardio, de aprendizado para os incapacitados, isso abria! E quem teria sonhado, que naquela mulher cega e paralítica, escondida, desativada, superprotegida toda a sua vida, vivia o germe de uma espantosa possibilidade artística (ignorada por ela e pelos outros) que germinaria e floresceria em uma rara e bela realidade, depois de permanecer adormecido, definhando por sessenta anos?”
Considerações Pessoais:
Neste texto do Sacks, é demonstrado de maneira extrema um dos princípios que mais me encanta em Milton H. Erickson. Ele acredita na infinita capacidade do ser humano de fazer o melhor com o que estiver ao seu alcance. Na capacidade de superação das dificuldades. Na capacidade de aprendizado inerente ao ser humano.
Também me questiono como temos criado nossos filhos, protegidos em nossas confortáveis barrigas-canguru, sem que descubram neles as potencialidades, habilidades e talentos inatos. O que será que tem passado despercebido neles, como passou em Madeleine, por simples falta de uso? Ou em nós mesmos?
Em minha experiência clínica tenho encontrado pessoas maravilhosas que lidam de maneira original e criativa com a resolução de dificuldades. Pessoas que tem encontrado dentro de si mesmo tesouros incalculáveis nessa maravilhosa aventura que é a vida e seu viver.
Quando leio os relatos clínicos de Oliver Sacks, vou me dando conta de como somos seres perfeitos. Podemos, por ter sempre sido assim, nem realizarmos toda a maravilhosa engrenagem que colocamos em funcionamento simplesmente ao abrir os olhos pela manhã e nos levantarmos, realizando as atividades rotineiras e cotidianas com as quais estamos habituados. Seus relatos me fazem agradecer o fantástico do ser simplesmente humano!